Como ver se o braço do seu instrumento está empenado
Antes de qualquer coisa, esse texto NÃO é para ensinar ninguém a regular uma guitarra, baixo ou violão. Se você veio aqui para isso tire o cavalinho da chuva e procure um curso de luthieria. A regulagem de instrumentos exige bastante treino e conhecimentos que vão muito além de uma simples avaliação de braço. A minha intenção é ensinar músicos a avaliarem o braço de seus instrumentos, sabendo quando é a hora de mandar para a manutenção ou diminuir as chances de músicos comprarem gato por lebre.
Vamos lá: uma das coisas mais importantes ao se avaliar o estado de um instrumento é o estado do braço: temos que ver se ele está reto. Este fator é tão importante que é a primeira coisa que qualquer bom luthier vai olhar. A posição do braço é determinante na ação de cordas, afinação, nivelamento de trastes, regulagens do capotraste e rastilho e até na altura dos captadores. Nenhum instrumento tem um bom desempenho se o braço não estiver reto.
Bom, e como podemos ver isso? Basta pegarmos o instrumento afinado e olharmos as duas bordas da escala de forma longitudinal (de comprido, para quem não manja dos paranauês linguísticos igual o luthier aqui). Nesta posição fica mais fácil ver se o braço está reto, para frente ou para trás. Na foto abaixo eu coloquei um incrível efeito visual em vermelho nessa borda que devemos prestar atenção.
A princípio você só vai ver defeitos muito pronunciados, mas com o treino mais e mais detalhes vão aparecer. Hoje, depois de anos trabalhando na área e centenas de braços avaliados eu consigo enxergar detalhes mínimos, mas não há atalhos para isso: você tem que treinar.
Voltando à parte que interessa: se o braço do seu instrumento está reto, então parabéns por manter seu instrumento regulado. Agora, caso você tenha visto que ele está para frente ou para trás, talvez seja bom você entender um pouco dos aspectos técnicos desses problemas:
- se um braço está para frente, ele está côncavo. Forma-se uma depressão mais ou menos das casas 5 até 15, a ação de cordas estará alta e provavelmente depois da casa 12 as notas sairão desafinadas.
- se o braço está para trás, ele está convexo. Forma-se uma “barriga” no meio do braço, a ação de cordas vai estar baixa demais causando trastejamentos por todo o braço, em especial nas primeiras casas que provavelmente estarão inaudíveis pelo trastejar.
Veja abaixo o exemplo nesta incrível e sofisticada ilustração de minha autoria:
No mundo real um braço perfeitamente reto vai trastejar nas primeiras casas, principalmente nas cordas mais graves. Isso se deve ao fato ligeiramente óbvio de que as cordas vibram, e portanto precisam de espaço. Tecnicamente elas vibram de forma elíptica, e isso significa que quanto mais grave a nota maior o espaço que precisa existir.
Você pode enxergar as cordas vibrando se posicionar as cordas do seu instrumento contra uma fonte de luz (TVs e monitores são bem legais pra isso), ou vendo este vídeo do YouTube.
Para solucionar este problema existe um termo em luthieria que se chama “neck relief”, ou alívio do braço. O neck relief é um ajuste bem fino: o braço fica minimamente côncavo, sendo que a concavidade no meio do braço não chega a meio milímetro; é uma coisinha de nada que faz uma diferença tremenda na tocabilidade.
Ok, voltando às bordas da escala: olhe os dois lados do braço, do jeito que está exemplificado lá na primeira foto com o incrível efeito visual. Se os dois lados estão retos, maravilha! Agora, se:
- os dois lados estão igualmente convexos: o braço está empenado. Mas fique tranquilo porque empenado só quer dizer que ele está torto, o que você já está careca de saber.
- os dois lados estão igualmente côncavos: outra forma de empenamento. É a mais comum, não precisa se desesperar, campeão.
- um lado está diferente do outro: o braço está torcido, e apesar de uma torção leve ser bem comum em instrumentos mais baratos devido à diferença de tensão entre as cordas, uma torção muito acentuada é um problema meio sério. Nesse caso, leve para um luthier avaliar o nível da torção e possíveis soluções.
Luthiers são animais meio arrogantes e imprevisíveis, mas inteligentes. Para ajudar a prevenir o empenamento existem algumas soluções, como inserir barras de aço ou grafite dentro do braço, mas em 1921 um empregado da Gibson chamado Thaddeus McHugh inventou uma outra peça mágica que vai dentro do braço, chamada tensor ajustável. Tensores, como o nome sugere, ajustam a tensão do braço.
Simplificando, são duas barras de aço soldadas em uma extremidade, enquanto a outra extremidade tem um sistema de porca e roscas que regulam a tensão aplicada na peça. Quanto mais tensão, mais o tensor fica convexo.
Simplificando mais ainda: o tensor puxa o braço para o lado contrário das cordas.
Com o ajuste do tensor é possível deixar um braço empenado reto de novo. Assim como o Elisbelt , não é feitiçaria: é tecnologia.
Alguns instrumentos não têm tensor ajustável. Normalmente são violões clássicos ou guitarras da Tonante, aquelas com vibrola interessante. Nestes instrumentos a regulagem do braço é bem mais complicada: deixa-se o braço preso em um sistema com sargentos e grampos em uma posição convexa até que a madeira vicie nesta nova posição, para que com a tensão das cordas afinadas o braço volte a ficar reto. Este é um processo que demora vários dias e só deve ser feito por quem realmente sabe o que está fazendo.
De qualquer forma, não tente dar uma da Rambo regulando seu instrumento, ok? Como eu disse lá em cima, a regulagem vai muito além de avaliar o braço. Existem chances de você descolar a escala, quebrar o tensor ou danificar seriamente o braço se não souber o que está fazendo. O reparo quando isso acontece é bem trabalhoso e luthiers são animais inteligentes: cobram baseado no tempo de trabalho.